sexta-feira, 16 de junho de 2017

Um conceito limite


Vamos tomar hoje uma frase que na Edição Standard brasileira, encontramos assim: “um ‘instinto’ nos aparecerá como sendo um conceito situado na fronteira entre o mental e o somático” (Freud, 1915/1996, p.127). Tal frase surge mais ou menos da mesma forma em dois outros textos: no Caso Schreber (1911/1996, p.81); e em uma nota acrescentada aos Três ensaios (1905/1972, p.171 – na edição de 1996 houve uma correção da tradução).

Tomemos a frase por partes. Sequer discutiremos a tradução do Trieb por instinto, pois já podemos acompanhar isto em outras postagens em nosso blog. Mas há que se atentar para o fato de que Freud não utiliza a palavra mental (em alemão, Mental) em nenhum momento de sua obra. Ele usa duas outras palavras – Seele/seelich (alma/anímico) e psychisch (psíquico). Nos interessa a ideia de que a pulsão seria um conceito situado na fronteira entre o mental e o somático. Nesse sentido, se considerarmos aquilo que a tradução nos apresenta, a pulsão poderá ser esquematizada da seguinte maneira:
Dessa forma, podemos observar um dualismo, tal qual o proposto por Descartes para a mente e o corpo. É que a tradução brasileira nos induz a supor que há uma fronteira nítida entre estes dois pontos (dualismo) e que tal conceito é colocado sobre tal fronteira. Entretanto, a frase original de Freud é: “der Trieb als ein Grenzbegriff zwischen Seelischem und Somatischem“ (1915/1999, p.214). Uma tradução mais fidedigna seria: “ a pulsão como um conceito-limite entre anímico e somático”.
O que devemos pensar é que a pulsão brota no orgânico (quantidade) e é reconhecida do psíquico (qualidade). Com esta forma não há mais o dualismo mente-corpo, mas algo muito mais característico da proposta freudiana: uma dualidade, forma em que os pares de opostos necessitam um do outro para coexistirem (vale a pena conferir o Volume 3 do livro de Garcia-Roza, Introdução à metapsicologia Freudiana). Estes opostos apresentam em Freud um conflito (Zwiespalt, Konflikt). O anímico e o somático não são excludentes, mas possuem uma interseção, um conceito-limite – a pulsão, que podemos pensar, escapando ao dualismo, a partir do esquema abaixo:

Com esta nova visão, entramos em um novo questionamento: seriam então todas as nossas formas de adoecimento, formas psicossomáticas? Isso deixamos em aberto.
Abraços a todos,

terça-feira, 13 de junho de 2017

Estímulos Externos x Estímulos Internos

Considerando, a partir das leituras anteriores, que o estímulo [Reiz] pode ser eliminado através de uma ação motora em forma de descarga, enquanto a pulsão [Trieb] é constante e impossível de ser removida a partir de ações motoras – “jamais atuando como uma força que imprime um impacto momentâneo, mas sempre como um impacto constante” (Freud, 1915/1996, p.124, grifos do autor), nos deparamos com noção de um estímulo pulsional, descrito como aquilo que “ não surge do mundo exterior, mas de dentro do próprio organismo” (Freud, 1915/1996, p.124).

Esse estímulo pulsional tem origem interna no organismo, e por isso, não há uma forma de conseguirmos fugir dele. Sendo assim, podemos caracterizá-lo como uma necessidade [Bedürfnis] e, como toda necessidade, só é possível suspendê-la a partir da satisfação [Befriedigung – cabe localizar o radical desta palavra: Frieden, paz; daí pensarmos em um apaziguamento]. A satisfação trata de um apaziguamento dos estímulos pulsionais, não sua eliminação, havendo sempre um resto não eliminado, uma dissimetria entre a necessidade e seu apaziguamento; tendo como referência que o prazer é a diminuição de algo que havia aumentado, podemos dizer que, no desprazer há uma elevação da tensão (uma quantidade que aumenta) e, no prazer, uma diminuição. Com isso podemos pensar esquematicamente o princípio do prazer, como vemos abaixo:


Como diferenciação, temos então que os estímulos que podem ser evitados são atribuídos ao mundo externo, enquanto que os estímulos que se apresentam de forma constante vão dizer de um mundo interno e de suas necessidades pulsionais.

domingo, 4 de junho de 2017

Um primeiro questionamento

No decorrer do texto por nós discutido ao longo deste ano, Pulsões e destinos da pulsão, Freud nunca deixa de salientar que a pulsão constitui-se como um conceito ainda obscuro para a teoria psicanalítica, tanto no que diz respeito à sua observação clínica quanto, consequentemente, à sua definição teórico-conceitual. Apesar disso, Freud propõe uma distinção entre pulsão (Trieb) e estímulo (Reiz). Resumidamente, a pulsão pode ser considerada um estímulo aplicado à alma (alma aqui em um sentido muito distante do sentido religioso, simplesmente como aquilo que anima o corpo). Mas o que isso quer dizer? Em primeiro lugar, devemos salientar que a pulsão, de acordo com Freud, surge no organismo, sendo impossível removê-la a partir de uma ação motora. Assim, a pulsão é constante e irremovível. “[...] visto que ela [a pulsão] incide não a partir de fora mas de dentro do organismo, não há como fugir dela” (Freud, 1915, p. 124).


O estímulo, de uma maneira geral, pode ser eliminado em decorrência de uma ação motora em forma de descarga, devido à sua condição externa e momentânea. “Por exemplo, a luz forte que incide sobre a vista não é um estímulo pulsional; já a secura da membrana mucosa da faringe ou a irritação da membrana mucosa do estômago o são” (Freud, 1915, p. 124). Grande parte das edições dos escritos freudianos traduz o termo Trieb (sendo pulsão o termo que mais se aproxima da ideia original proposta por Freud) por instinto. Entretanto, Freud utiliza a palavra Instinkt para designar um determinismo anterior ao ser humano, ou seja, uma repetição cega da espécie. Nesse sentido, a partir da diferenciação terminológica entre pulsão, estímulo e instinto, surge um questionamento acerca do caminho seguido. Há, de início duas possibilidades para a discussão:

Estímulo - instinto - pulsão
ou
Estímulo - pulsão

A questão é se haveria em nós um instinto anterior ao surgimento da pulsão, ou se a dinâmica seria resumida apenas a um estímulo pulsional. Este questionamento ainda se mantém em nosso grupo, e será necessário avançar mais nas leituras para buscar uma resposta mais próxima ao texto freudiano. Esperamos que todos venham conosco nesta busca.

sexta-feira, 2 de junho de 2017

Uma prévia sobre pulsão, suas representações e o conhecimento científico


A pulsão é inicialmente citada como “instinto”, quando traduzida do inglês [instinct], ou como impulso/pulsão” quando traduzida do alemão [Trieb]. A pulsão, para Freud, é algo que nunca se torna objeto da consciência pois ela necessita de uma representação [Vorstellung] e ainda de um representante [Repräsentanz] que a conduza até o Consciente. Assim, o que pode vir a se tornar  consciente é o representante desta representação [Vorstellungsrepräsentanz]. Para Freud, no texto sobre O recalque, “além da representação, outro elemento representativo da pulsão tem de ser levado em consideração” (Freud, 1915/1996, p.157). Nesse sentido, partindo da ideia inicial de uma indistinção entre a própria pulsão e seu representante, Freud irá traçar nos textos seguintes, em especial O recalque e O inconsciente, uma distinção mais acentuada entre estes dois pontos.
As nomeações para as moções pulsionais [Triebregingen] surgiram pela primeira vez em Atos Obsessivos e Práticas Religiosas (Freud, 1907/1996), mas já existiam anteriormente caracterizados como excitações ou estímulos endógenos. Podemos diferenciar o estímulo da pulsão a partir de sua constância: enquanto o estímulo se dá como uma força geradora de um impacto, a pulsão atua como uma força que é sempre constante. Até 1910, Freud dizia de uma pulsão sexual que usava da libido como expressão; só depois o conceito de pulsão do eu foi introduzido aos textos como um impulso de autopreservação; a pulsão de morte só vem a surgir no ano de 1920, em Além do princípio de prazer, sendo nela consideradas as pulsões agressivas e destrutivas.
Durante o nosso estudo, nos depararemos com variados conceitos e até mesmo divergências entre eles – como já ocorrido até o momento. Para isso, é importante que saibamos como o conhecimento científico é elaborado, e nesse sentido Freud apresenta uma boa introdução em seu texto Pulsões e destinos da pulsão (1915/1996). A primeira etapa é a descrição do fenômeno a ser o objeto de estudo; as ideias que aparecerem nessa etapa serão os conceitos básicos da ciência; os conceitos científicos só serão elaborados após uma investigação completa no campo da observação, e assim se tornará uma definição.
A pulsão pode ser considerada como um conceito básico, que apesar de essencial ainda necessita de um aprofundamento em seus estudos. Esse conceito esbarra e atravessa conteúdos de diversos ângulos, como por exemplo, o estímulo e estímulo mental em fisiologia. Nesse sentido, tentaremos, nos próximos encontros, estabelecer um diferencial entre estímulos fisiológicos, estímulos instintuais (no sentido biológico) e estímulos pulsionais.