quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Palavras e coisas


O último tópico do artigo O Inconsciente antes dos apêndices, o tópico VII, começa diferenciando as neuroses de transferência (histeria de medo, histeria de conversão e neurose obsessiva) das psiconeuroses de narcísicas (psicoses) no que se refere à relação entre o Eu e objeto. Visto que, segundo Freud, já avançamos muito até este ponto com os estudos das neuroses de transferência e da vida onírica, precisamos ainda, para compreendermos melhor o Inconsciente, analisar mais atentamente agora as psiconeuroses narcísicas, para entendermos suas peculiaridades e lançar novas luzes ao conhecimento sobre o Inconsciente.

No que se refere à antítese entre o Eu e o objeto, Freud vem nos dizer que esta não acontece nas neuroses de transferência. Como já vimos em outros momentos, quando há a expulsão do objeto inicia-se a neurose, ficamos apenas com uma representação deste objeto no Inconsciente. Apenas com novos investimentos esta representação pode surgir no Consciente, depois de passar pelo processo primário. Dessa forma o Eu pode voltar a investir sua libido no objeto, e assim, elimina-se a antítese.

Entretanto, nas psicoses, a libido que foi retirada do objeto no ato do recalque (lembremos que até esse momento da teorização Freud contava apenas com um mecanismo – o Recalque) não procura posteriormente um novo objeto, mas se volta para o Eu, e é aqui que se encontra tal antítese conjecturada por Freud. Sendo assim, estabelece-se uma condição narcísica, investindo-se libidinalmente apenas no Eu, e é por isso que Freud vai dizer que não é viável o tratamento psicanalítico de psicóticos, pois eles são incapazes de estabelecer transferência (lembremos também que esta possibilidade foi revista com sucesso por Lacan da década de 1950). Além disso há a recusa do mundo externo, dentre outras características. É por isso que Freud começa a estudar as psicoses, pois “muito do que é expresso na esquizofrenia como sendo consciente, nas neuroses de transferência só pode revelar sua presença no Ics. através da psicanálise.” (Freud, 1915/1974, p.225). Estaria aqui uma primeira forma do jargão psicanalítico de que na psicose o inconsciente está a céu aberto?

Outro importante ponto neste texto é que Freud começa a dar extrema importância ao que ele chama de modificação na fala dos psicóticos, dizendo que ela se torna afetada e preciosa. Logo Freud vem explicitar esses fatos citando outros autores e casos, ficando claro que o pai da psicanálise está trabalhando com a linguagem, fato muito bem ressaltado por Jaques Lacan, que fez grande uso da linguística estrutural em sua primeira clínica, incluindo trabalhos de vulto sobre a psicose.

A partir de um dos casos expostos, Freud conclui que nas psicoses há uma divergência no que diz respeito à palavra e à coisa (palavra enquanto discurso verbal e coisa enquanto atributo Ics.) Nesse sentido, para o psicótico não há uma representação da palavra (Wortvorstellung), há apenas a representação da coisa (Sachvorstellung).
Retomando raciocínios anteriores, Freud afirma que não existem “registros diferentes do mesmo conteúdo em diferentes localidades, nem tampouco diferentes estados funcionais de investimentos na mesma localidade” Então se uma representação Ics. não é investida permanece em estado de coisa, e se é investida ganha além do estado de coisa, o de palavra e só assim vai ao Cs. Temos então que no Ics. só há apresentação de coisa, enquanto no Pcs-Cs há a representação de coisa mais a representação de palavra.

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Aviso aos navegantes II e III


 Como frequentemente fazemos, continuamos a encontrar erros (grosseiros diga-se de passagem) na Edição da Standard Brasileira de Freud e mais uma vez apontaremos mais alguns que, se passarem desapercebidos, podem causar estranheza e desentendimento sobre o que Freud está se referindo.


No tópico VI, página 221 (edição brasileira de 1974) temos o seguinte trecho: “Quanto mais procuramos encontrar nosso caminho para uma concepção metapsicológica da vida mental, mais devemos aprender a nos emancipar da importância do sistema de ‘ser consciente’.”
O trecho em itálico contém um erro, pois, na verdade Freud fala “In dem Masse, als wir uns zu einer metapsychologischen Betrachtung des seelenlebens durchringen wollen, mussen wir lernen, uns von der Bedeutung der Symptoms ‘Bewusstheit‘  zu emanzipieren.” Mesmo sem saber a língua alemã fica claro que symptoms não é sistema, mas sim sintoma.

Outro ponto em que encontramos um erro se encontra já no tópico VII, na página 230, vejamos:

Agora parece que sabemos de imediato qual a diferença entre uma apresentação consciente e uma inconsciente. As duas são, como supúnhamos, registros diferentes do mesmo conteúdo em diferentes localidades psíquicas, nem tampouco diferentes estados funcionais de investimentos na mesma localidade; mas a apresentação consciente abrange a representação da coisa mais a representação da palavra que pertence a ela, ao passo que a representação inconsciente é a representação da coisa apenas. (Freud, 1915/1974, p.229-230)

Atentemos para as expressões em itálico. A forma como está escrito acima, além de trazer a ideia errônea de que existe diferentes registros da representação em lugares distintos no aparelho psíquico, traz uma contradição com o segundo grifo. Na verdade, no primeiro grifo, a forma correta é “As duas não são (...)” e assim refaz-se o sentido correto sobre um único registro da representação.

Para melhor evidenciarmos vejamos o original alemão, com as respectivas expressões em itálico: “Die beiden sind nicht, wie wir gemeint haben, verschiedene Niederschriften desselben Inhaltes an verschiedenen psychischen Orten, auch nicht verschiedene funktionelle Besetzungszustände an demselben Orte, sondern die bewußte Vorstellung umfaßt die Sachvorstellung plus der zugehörigen Wortvorstellung, die unbewußte ist die Sachvorstellung allein.”
A expressão “sind nicht” quer dizer “não são”; e “auch nicht” quer dizer “também não”. Cabe lembrar que edições brasileiras posteriores a 1996 trazem esse segundo erro já corrigido.


Sendo assim observamos mais dois erros na Edição Standard que sem dúvida, se não forem observadas e evidenciadas, podem causar erros e desentendimentos na compreensão dos textos de Sigmund Freud. 

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Três barreiras à representação



A cada capítulo do artigo metapsicológico de Freud O Inconsciente (1915), nos deparamos com mais questões minuciosas que, se não nos debruçarmos com tranquilidade sobre os textos, não nos atentaremos à questões que são de fundamental importância para entendermos os conceitos fundamentais da psicanálise.
Agora, no capítulo VI percebemos alguns pontos que se referem, assim como o título do artigo, à comunicação entre os dois sistemas (Cs. e Ics). Neste capítulo Freud nos traz uma nova etapa que poderá interferir ou não na passagem da representação do Ics. para o Cs, passando pelo Pcs.
Até então sabíamos que quando a representação não era compatível com a Consciência, ela era recalcada, e retornava ao Ics. Então para retornar ao Cs. ela deveria se transformar , superar o recalque e só então se ligar novamente ao afeto. Para melhor ilustrar vejamos a seguir o chamado “esquema do pente” em que Freud elucida como é o caminho do estímulo que chega ao sujeito.




Dessa forma, chega-se primeiro ao Inconsciente, (o primeiro traço depois da percepção  e dos traços mnêmicos), depois  passa-se pelo Pré-consciente e só depois se chega à consciência. Entre o Ics. e o Pcs. fica a barreira do recalque. O que Freud trás de novo agora é que entre o Pcs. e o Cs. existe mais uma barreira, que ele chama de Censura.

Agora, passa a ser provável que haja uma censura entre o Pcs. e o Cs. Não obstante, faremos bem em não consideramos essa complicação como uma dificuldade, mas em presumirmos que, a cada transição de um sistema para o que se encontra imediatamente acima dele (isto é a cada passo no sentido de uma etapa mais elevada na organização psíquica), corresponde uma nova censura. [...] No tratamento psicanalítico fica provada, sem sombra de dúvida, a existência de uma segunda censura, entre os sistemas Pcs. e Cs.  (Freud, 1915/1974, p.219-220, grifos do autor).

Neste sentido Freud nos fala de uma segunda censura entre o Pcs. e o Cs, sendo que esta nos parece exercer uma função parecida com uma resistência, na qual, por meio de um grande esforço o paciente deve se empenhar para que tal censura não impeça que os derivados do Ics cheguem ao Cs.
Temos então três barreiras. Uma primeira entre o Ics e o Pcs que se chama recalque (Verdrängung); uma segunda entre o Pcs e o Cs que é a censura (Zensur); e uma outra externa ao sujeito, muito mais próxima de questões sociais e culturais – a repressão (Unterdrückt). Cada uma delas parece cumprir um papel diferente.

Mais adiante Freud nos trás uma outra questão: “Constitui fato marcante que o Ics. de um ser humano possa reagir ao de outro, sem passar através do Cs.”  (Freud, 1915/1974, p.219-220). Aqui e em outros pontos de sua obra ele nos traz  sua concepção de que o Ics. está dentro de cada sujeito, é individual, e esse Ics. pode afetar o de outra pessoa. Jacques Lacan, no que se refere ao Inconsciente constrói outra conceituação, e um dos atributos do Inconsciente em Lacan é que ele é estruturado como uma linguagem, e tem um caráter transindvidual, mas isso é assunto para outro momento.


sexta-feira, 21 de agosto de 2015

A Lógica do Inconsciente

O capítulo V do texto O Inconsciente (1915), chamado As características especiais do sistema Inconsciente, Freud vem nos falar sobre algumas características peculiares do sistema Inconsciente e de alguns de seus mecanismos de funcionamento e que “apresentam características que não tornamos a encontrar no sistema imediatamente acima dele.” (Freud, 1915/1974, p.213), ou seja, não as encontraremos no sistema Consciente. 

O pai da psicanálise vem nos colocar que no Ics. existem representantes pulsionais que carecem de descarregar seu investimento, impulsos de desejos.  Esses impulsos coexistem tranquilamente no Ics. sem que um influencie o outro. Dessa forma, quando dois impulsos contrários são investidos simultaneamente, ocorre uma espécie de processo de união, onde nenhum deles se anulam, mas cedem uma parte de si mesmo, nas palavras de Freud eles “se combinam para formar uma finalidade intermediária, um meio termo” (1915/1974, p.213). Isso ocorre porque no Inconsciente não existe contradição. Não existe nem mesmo negação, esta é o substituto do recalque. O Inconsciente funciona, como já dissemos, com representantes, impulsos mais ou menos investidos, assim não podemos pensar no Inconsciente funcionando com perspectivas antagônicas, contraditórias, pois toda a atividade desse sistema ocorre devido às censuras entre Ics./Cs.
Além disso, ainda ocorrem outros processos com as intensidades de investimento, como os dois processos psíquicos primários: deslocamento e condensação. O primeiro faz com que uma representação influencie a outra, transforme a outra através do investimento a ela cedida, e o segundo faz com que todo o investimento de outras representações seja levado à uma representação*. Ainda, quando algo do processo primário ocorre no Pcs. e no Cs., as representações contidas nesses dois sistemas são apercebidas como engraçadas, porque os processos de deslocamento e condensação não fazem “sentido” à nossa consciência, que na verdade nem são percebidos em si mesmos. No sistema Pcs. o que é dominante é o processo secundário, que Freud não aborda muito a fundo neste texto, mas esse processo quer dizer mais sobre o pensamento.

Ainda sobre os processos do Ics. Freud nos diz que eles:
(...) são intemporais; isto é, não são ordenados temporalmente, não se alteram com a passagem do tempo; não têm absolutamente qualquer referência ao tempo. A referência ao tempo vincula-se, mais uma vez, ao trabalho do sistema Cs. (Freud, 1915/1974, p.214, grifos do autor)

Aqui temos de considerar a importância de entendermos essa atemporalidade (a tradução por intemporal é mais um erro de tradução). O inconsciente desconhece a passagem do tempo, o que é muito diferente dizer, por exemplo, que o inconsciente desconhece o tempo, ou que no inconsciente não existe o tempo, porque se assim fosse, não seria possível, por exemplo, os três tempos do recalque como já discutimos em outros momentos.

No que se refere à realidade factual, Freud vem nos dizer que esta não é levada em consideração pelo sistema Ics., e que este é regulado pelo princípio de prazer, ou seja ao cumprimento ou não do prazer/desprazer. Já o consciente sim, este é regulado pelo princípio de realidade, que nos leva a considerar mais o mundo externo.

Por fim, como o próprio Freud, podemos resumir então as características principais do sistema Ics. como quatro:

  1.    a isenção de contradição mútua (não há negação);
  2. o processo primário (condensação e deslocamento como mobilidade dos investimentos);
   3. a atemporalidade (o inconsciente desconhece a passagem do tempo);
  4.      e a substituição da realidade externa pela psíquica (o inconsciente é regido pelo princípio do prazer, e não pelo princípio de realidade).


*No livro A Interpretação dos sonhos (1900) Freud vai explicar mais minunciosamente esses dois processos, o deslocamento e a condensação, além de outros.


quinta-feira, 20 de agosto de 2015

As neuroses de transferência e o processo do recalque

Continuando o capitulo IV sobre O Inconsciente (1915), Freud vai explicar como ocorre o processo do recalque nas neuroses, que ele chama de neuroses de transferência.

Antes de começar nossas discussões temos de fazer algumas considerações importantes no que se refere – novamente- às traduções do alemão-inglês-português, e suas edições. Na Edição Standard das Obras Completas de Sigmund Freud (usamos aqui a edição brasileira de 1974), a partir da página 209, Freud começa a falar sobre histeria de ansiedade, já na edição das obras completas da Companhia das Letras (2010) a partir da página 89, está escrito histeria de angústia. Na edição alemã para se referir à essa ansiedade ou angústia das quais nos falam nossas traduções, Freud usa o termo Angst, que se traduz como primeira escolha, por medo. Pensar em medo nesse contexto é mais próximo da ideia de Freud, pois aqui ele está trabalhando com fobias, como ele mesmo diz na página 211 da Standard (da edição citada anteriormente) quando fala sobre as representações substitutivas, que “à totalidade dessa construção, que é erigida de forma análoga nas demais neuroses, denominamos fobia.”

Sobre as neuroses de transferência, Freud começa pela histeria de medo, onde o impulso amoroso que estava no Ics. e que se fazia necessário para passar para o sistema Pcs. através de um investimento, não o faz devido a uma fuga. Esse investimento dirigido ao impulso amoroso que seria feito à representação Ics. e que foi recalcado é descarregado como medo. Caso aconteça, em um segundo momento, o da repetição, esse investimento que não se ligou àquele impulso amoroso se liga há uma representação substitutiva, podemos dizer, representação “semelhante” à representação rejeitada outrora. Essa representação substituta é semelhante à recalcada, mas esta, por sua vez, não é recalcada devido há um processo de deslocamento que faz com que ela se transforme e fique distante de tal representação que fora recalcada inicialmente. Assim, agora fica mais claro esse medo, já que está ligada há uma representação, mesmo que substituta. Ainda há de se considerar que essa representação substituta funciona também impedindo que a representação recalcada venha ao sistema Cs., funcionando assim como um contrainvestimento, e ainda “é, ou age como se fosse, o ponto de partida para a liberação do afeto revestido de medo, que agora se tornou inteiramente desinibida.”(Freud, [1915] 1974, p.209)

Quanto à histeria de conversão, Freud vem nos dizer que “o investimento pulsional da representação recalcada  converte-se na inervação do sintoma.”([1915] 1974, p.212) Assim ao invés de se transformar em medo, quando acontece o recalque da representação, esse investimento é transformado em descarga motora e vai em direção ao corpo. Além disso o contrainvestimento na histeria de conversão opera de forma diferente, pois é ele que vai participar na formação dos sintomas. Sobre o papel do contrainvestimento, Freud vem nos dizer:

É o contrainvestimento que decide em que porção do representante pulsional pode concentrar-se todo o investimento do último. A porção assim escolhida para ser um sintoma atende à condição de expressar a finalidade impregnada de desejo do impulso pulsional, bem como os esforços defensivos ou punitivos do sistema Cs. no recalque não precisa ser tão grande quanto a mantida, de ambas as direções, como a representação substitutiva na histeria de medo. (Freud [1915] 1974, p.212)


Sobre a neurose obsessiva, Freud vem citar o artigo anterior, O Recalque (1915/1974) no qual ele fala que de início algo (uma representação) foi recalcado com certo sucesso, e que em um segundo momento retorna ao Cs. sobre ação do deslocamento, um substituto por deslocamento. Assim, o recalque, da mesma forma que não é efetivo em sua totalidade na histeria retornando no corpo, no obsessivo ele retorna nas ideias, agindo como evitações, restrições e proibições nos pensamentos do sujeito. No texto d’O Inconsciente (1915/1974), Freud acrescenta que na neurose obsessiva podemos observar a ação do contrainvestimento de maneira mais clara, uma vez que é ele que assegura o recalque naquele primeiro momento, antes da representação substituta por deslocamento aparecer ao Cs., e é em função do contrainvestimento assegurar este recalque que este substituto por deslocamento aparece. Freud considera a suposição de que de certa forma o recalque na neurose obsessiva e na histeria de angústia (fobia e histeria de medo também são formas válidas, sendo que esta última seria melhor tradução para o termo Angsthysterie [Ansgt – medo], utilizado por Freud) não é tão efetivo quanto na histeria de conversão, porque nas duas primeiras o contrainvestimento opera com mais perspicácia e ainda não há uma descarga; na histeria de conversão há sim uma descarga motora, onde se percebe como a manifestação do adoecimento histérico.

terça-feira, 21 de julho de 2015

Os lugares do aparelho psíquico e os três tempos do recalque


Continuando nossos estudos sobre o texto O Inconsciente (1915), a sessão IV é nomeada como "Topografia e dinâmica da repressão" na edição Standard de 1969; "Tópica e dinâmica do recalque" na edição de Luiz Hanns. No alemão Freud usou o termo Topik traduzido por tópica, que quer dizer lugar, ou seja, o pai da psicanálise está discutindo ao longo deste texto sobre os lugares - Cs, Pcs e Ics - onde acontece o recalque e como se dá este "ir e vir" das representações.
Podemos ao longo deste texto eleger alguns pontos principais que são extremamente importantes para a teoria psicanalítica. Um deles é que Freud traz pela primeira vez com mais consistência a ideia do recalque acontecendo em três tempos. O primeiro que ele chama de recalque primevo ou primeiro; o segundo é o recalque propriamente dito, e o terceiro é aquele em que a representação recalcada no segundo momento retorna (o retorno do recalcado) – o sintoma, por exemplo; que é também quando Freud nos fala sobre a repetição.
Dando sequência, outro ponto que podemos eleger como de suma importância neste texto, é quando Freud, discutindo justamente o recalque e seus momentos questiona: que mecanismo mantém o recalque propriamente dito e assegura o estabelecimento e a continuação do recalque primeiro? Como resposta ele traz o conceito de contra-investimento.

Esse outro processo só pode ser considerado mediante a suposição de um contra-investimento, por meio da qual o sistema Pcs. se protege da pressão que sofre por parte da ideia inconsciente. [...] É isso que representa o permanente dispêndio [de energia] de um recalque primevo, garantindo, igualmente, a permanência desse recalque. O contra-investimento é o único mecanismo do recalque primevo; no caso do recalque propriamente dito (‘pressão posterior’) verifica-se, além disso, a retirada do investimento do Pcs. É bem possível que seja precisamente o investimento retirado da ideia o utilizado para o contra-investimento. (Freud, 1915, p. 208, grifos do autor)

É interessante notar o uso alemão do termo dem Nachdrängen, literalmente a pressão posterior, para se referir ao recalque (Verdrängung) propriamente dito, o secundário. Podemos notar o mesmo verbo (drängen – empurrar, forçar) na raiz das duas palavras. Entretanto no caso do recalque propriamente dito, secundário, o verbo é acrescido da preposição nach que sugere um depois, inseparavelmente ligado ao primeiro.
Assim Freud vem nos mostrar que o contra-investimento é a energia que o recalque usa para agir e o contra-investimento impede que as representações Ics. venham à consciência, mas, para que essas representações venham à consciência é necessário um investimento. Assim, de forma geral, quando uma representação está no Cs. e é recalcada houve uma retirada de investimento da representação neste sistema para lavá-la ao Ics.. Lá o contra-investimento age impedindo que esta representação retorne para o Cs., mas com um investimento sobre a representação, esta retorna ao Cs. 
Desta forma Freud nos diz que "Além do ponto de vista dinâmico e tópico adotamos o econômico" (Freud, 1915, p.208). Este ponto vista é econômico porque ele vem trabalhar com a energia libidinal (investimento / contra-investimento) e é ela que faz com que tais representações tomem os diversos caminhos entre os sistemas Ics., Pcs. e Cs.
Com isso Freud conclui que, com os pontos de vista dinâmico, tópico e econômico dos processos psíquicos, podemos nos referir à psicanálise como uma metapsicologia, pois trabalha com conceitos nunca antes estudados/pesquisados pela psicologia.

quinta-feira, 2 de julho de 2015

Os sentimentos inconscientes – repressão e recalque


A sessão III do artigo O Inconsciente (1914) que estamos discutindo, tem como título na Standard Edition de 1974 “Emoções Inconscientes”, na edição de 2010 da Companhia das letras está como “Sentimentos Inconscientes”, da mesma forma na edição alemã Gesammelte Werke, onde está escrito Unbewußte Gefühle (Sentimentos Inconscientes).

Neste texto Freud vem nos dizer que a oposição entre inconsciente e consciente não se aplica à pulsão, e que esta não pode ser tornar objeto da consciência, mas apenas a sua representação. Dessa forma se a pulsão não se liga a uma representação nada podemos saber dela.
Segundo Freud estamos acostumados a entender que nossas emoções, sentimentos e afetos são da ordem da consciência, e, portanto, temos pleno conhecimento sobre eles. Entretanto ele vem nos alertar que na prática psicanalítica podemos falamos em amor, ódio e ira inconscientes. Isso se deve a que muitas das vezes impulsos afetivos ou emocionais sejam sentidos, mas não identificados corretamente, devido ao fato de que esse afeto carece de uma representação, que por sua vez fora recalcada.
Quando falamos de afetos inconscientes e emoções inconscientes, nos referimos aos caminhos tomados, por causa do recalque que essa representação sofreu, através do impulso pulsional. Freud vem nos falar de três possíveis caminhos, e deste modo, destinos que o afeto pode tomar: No primeiro deles “o afeto permanece, no todo ou em parte, como é”; no segundo caminho “é transformado numa quota de afeto qualitativamente diferente, sobretudo em medo (Angst)”; e o terceiro caminho que Freud nos mostra o afeto “é reprimido (Unterdrückt), isto é, impedido de se desenvolver”.

Mais uma vez nos deparamos com questões relativas à tradução de nossas edições brasileiras das obras de Freud, mais especificamente a Standard Edition, tornando-se impossível fazermos considerações sobre o que Freud quer nos dizer sem levarmos em conta estas questões.
Aqui nos deparamos com esses três destinos do afeto, onde no primeiro o afeto continua em seu estado normal, sem alteração, ou pelo menos em parte como é. No segundo caminho, segundo a Standard Edition o afeto pode se transformar em ansiedade. Na edição alemã encontramos “oder er erfährt eine Verwandlung in einen qualitativ anderen Affektbetrag, vor allem in Angst”. A palavra Angst que apressadamente traduziríamos por angústia (ainda que essa tradução também seja correta, sobretudo com as traduções de pessoas ligadas à escola lacaniana), na verdade tem como sua primeira tradução medo. Assim Freud nos diz que o afeto em um de seus caminhos pode se transformar em medo (ou angústia).
No terceiro caminho possível a ser sofrido pelo afeto, como já expusemos, o afeto pode ser reprimido, e onde mais uma vez a Standard Edition traz confusão. Em quase todas as vezes em que surge o termo repressão, em todos os volumes da Standard Edition, somos obrigados a trocar esta palavra por recalque. É que, via de regra, quando temos o surgimento do termo repressão na Standard Edition, Freud utilizou o termo Verdrängung, entendendo esse processo como o movimento que a representação faz do sistema Cs. em direção ao Ics. desligando-se do afeto. Neste trecho especificamente não, pois aqui Freud usa o termo Unterdrückt referindo-se aí sim à repressão. Vejamos no texto de Freud (aqui na tradução de Luiz Hanns): “Sabemos que a repressão do desencadeamento do afeto é o verdadeiro objetivo do recalque [...]”; ou em alemão: “Wir wissen auch, daß die Unterdrückung der Affektentwicklung das eigentliche Ziel der Verdrängung ist [...]”.
Desta forma a repressão diz de um esforço da consciência para reprimir, sufocar o afeto, e esse é o objetivo da repressão: impedir, inibir o desenvolvimento dos afetos. Assim, inibindo um impulso pulsional este afeto não se manifesta. Nesse sentido, para exemplificar, podemos pensar no caso de Freud (Elisabeth von R.) em que a paciente, na ocasião da proximidade da morte de sua irmã, tem o pensamento de que será bom ter seu cunhado agora só para ela. Nesse momento ela reprime essa ideia de forma consciente, não acontecendo de essa ideia ser levada ao Inconsciente. Os sentimentos pelo cunhado eram inconscientes, mas a repressão do pensamento foi consciente.
Freud ainda nos fala também sobre o movimento que o impulso pulsional faz em relação a representação e ao afeto:

Com frequência, contudo, a moção pulsional tem de esperar até que encontre uma representação substitutiva no sistema Cs. O desenvolvimento do afeto pode então provir desse substituto consciente e a natureza desse substituto determina o caráter qualitativo do afeto. Afirmamos que no recalque ocorre uma ruptura entre o afeto e a representação à qual ele pertence, e que cada um deles então passa por destinos isolados. Descritivamente, isso é incontestável; na realidade, porém, o afeto, de modo geral, não se apresenta até que o irromper de uma nova apresentação no sistema Cs. tenha sido alcançado com êxito. (Freud [1915] 1974, p.205-206, como modificações nossas na tradução)


Temos por fim com Freud que o afeto não se desenvolve até que uma nova representação substitutiva chegue ao Cs. Liga-se assim o afeto à nova representação (esse é o caminho de formação dos sintomas). Assim podemos pensar que ao chegar ao sistema Cs. a representação recebe uma carga de investimento, ao passo que o afeto, a emoção, faz um movimento de descarga, percebido como sentimentos. 

quarta-feira, 17 de junho de 2015

Os sistemas Ics e Cs

Na segunda parte do texto 'O inconsciente' ([1915]1969), Freud vem nos falar sobre o ponto de vista topográfico desse conceito, apresentando o inconsciente como algo que poderia ser interno a cada um de nós.
Conforme observado, existem atos psíquicos que possuem os valores inconstantes, correspondendo às características de serem inconscientes. Desse modo, Freud nos diz que uma parte do inconsciente abrange atos que são somente latentes, apresentando-se temporariamente inconscientes, mas que não diferem em nenhuma outra forma dos atos conscientes. Em contrapartida, abarca processos recalcados que, se viessem à consciência, estariam predispostos a ressaltar uma discrepância mais grosseira em relação aos outros processos conscientes.
Com o intuito de esclarecer essas explicações, Freud sugere que os atos conscientes e inconscientes devam ser classificados levando em conta a relação com as pulsões e as finalidades da sua composição. Porém, ressalta que isso seria inviável pois, não há como escapar dessa ambiguidade consciente / inconsciente, tendo em vista que ora elas são empregadas com o sentido descritivo e ora com o sentido sistemático.
A partir de tal confusão, ele emprega as siglas Cs para se referir a consciência (Bewußtsein – consciência; diferente de Bewußt – consciente) e Ics para àquilo que seria inconsciente, isto é, quando estiver usando as duas palavras para se referir ao sentido sistemático do sistema psíquico.
Os atos psíquicos passam por dois tipos de fases, sendo que são interpostas por uma espécie de barreira (censura).
Na primeira fase, o ato psíquico é inconsciente e pertence ao sistema Ics; se, no teste, for rejeitado pela censura, não terá permissão para passar à segunda fase; diz-se então que foi ‘recalcado’, devendo permanecer inconsciente. Se, porém, passar por esse teste entrará na segunda fase e, subsequentemente, pertencerá ao segundo sistema, que chamaremos de sistema Cs. (Freud, [1915] 1969, p. 178).

Sendo assim, Freud volta a confirmar o que foi dito na introdução de ‘O inconsciente’, dizendo que o recalcado é apenas uma parte do inconsciente, de modo que o que foi recalcado, não sendo permitido passar pela censura deve permanecer em um estado latente. Porém, embora ainda não seja consciente, ele é capaz de se tornar consciente sem qualquer resistência. Levando em consideração essa capacidade, o sistema Cs pode também ser denominado de ‘pré-consciente’ (Pcs) partilhando das mesmas características. Assim a censura determina a transição do que é Ics para o Pcs.

segunda-feira, 15 de junho de 2015

Caminhando pelo Inconsciente

O conceito de inconsciente é o motivo pelo qual a psicanálise existe, sendo assim como a ciência do inconsciente. Para tal feita, Freud expõe no texto sobre O Inconsciente (1915), o qual estamos trabalhando, que é necessária e legítima sua suposição inicial sobre a existência do Inconsciente, mostrando-nos justificativas autênticas para essa conjectura e motivos para entendermos tal suposição. Esta por sua vez é necessária, devido às diversas lacunas que aparecem na consciência e que carecem de explicação e entendimento.

Sobre a existência do conceito de inconsciente Freud nos diz:

Podemos ir além e afirmar, em apoio da existência de um estado psíquico inconsciente, que, em um dado momento qualquer, o conteúdo da consciência é muito pequeno, de modo que a maior parte do que chamamos conhecimento consciente deve permanecer, por consideráveis períodos de tempo, num estado de latência, isto é, deve estar psiquicamente inconsciente. Quando todas as nossas lembranças latentes são levadas em consideração, fica totalmente incompreensível que a existência do inconsciente possa ser negada. (Freud [1915] 1974, p.192-193)

Deste modo apenas a existência da consciência é pouco para que possamos entender as muitas manifestações da nossa mente, entendendo aqui tudo o que nos escapa à consciência, tudo o que nos aparece como estranho à nós mesmos. Ainda, a maioria do que nos é percebido como conhecido e pertencentes à nós já fora uma vez tida em estado de latência.  
Freud coloca que a suposição da existência do Inconsciente se deve ao fato que há alguns atos psíquicos ininteligíveis que podemos eleger como sendo desconhecidos a nós, como os atos falhos e os sonhos em pessoas sadias, e os sintomas e as obsessões em pessoas adoecidas. Tais conclusões desses atos psíquicos ininteligíveis advém da experiência clínica-analítica e que existem até motivos antes mesmo da psicanálise para tal suposição, como por exemplo o trabalho com a hipnose.
A recusa em aceitar a existência do inconsciente, segundo Freud se deve em grande parte ao fato de que esse tema nunca fora antes discutido pela psicologia e que esta consequentemente volta o seu olhar só e exclusivamente para a consciência. Então por isso quando, por exemplo um terapeuta se dirige a um ato falho, ou um sonho sem explicação aparente como sendo sem importância é porque este está pensando e trabalhando com a psicologia do consciente, sem por sua vez se dedicar aos processos do inconsciente.


Para melhor expor os motivos da existência do Inconsciente, Freud decide expor fatos concretos de que não se tem dúvidas sobre esses atos psíquicos ininteligíveis, ou atos controvertidos. Assim Freud nos coloca que pela via fisiológica ou química* não se terá nenhum resultado sobre esses atos latentes, uma vez que estes trabalham em uma outra lógica. Mas sim, teremos alguma ideia de sua essência se trabalharmos pela via da consciência, uma vez que estes têm íntima relação, e que a partir desta, os atos mentais latentes podem vir a ser conscientes.


* Aqui encontramos mais uma vez um erro grosseiro de tradução. Chamamos de erro grosseiro porque não é algo como uma escolha do tradutor (tal como traduzir a palavra alemã trieb por instinto ou pulsão), mas um erro que realmente muda o sentido do texto tornando-o incompreensível. Nas edições da Standard Edition em português, encontramos a seguinte frase para tratar dessa parte: “nenhum conceito psicológico ou processo químico pode dar-nos qualquer ideia a respeito de sua natureza”. Com isso temos que o inconsciente não pode ser apreendido nem pela química (medicina, biologia e tantas outras disciplinas) nem mesmo pelo psiquismo (psicologia e até mesmo a psicanálise). Isso torna o inconsciente absolutamente inapreensível. Contudo, ao buscarmos o texto alemão original encontramos a seguinte frase: “keine physiologische Vorstellung, kein chemischer Prozeß kann uns eine Ahnung von ihr em Wesen vermitteln”. Com as palavras em itálico, podemos ver, sem conhecimento algum da língua alemã, que Freud se refere a representações fisiológicas e processos químicos. Podemos então compreender que Freud afirma a impossibilidade de se apreender o inconsciente a partir da fisiologia, da química, das neurociências, etc.; entretanto, é possível ter representações psíquicas do inconsciente, o que nos permite a existência da psicanálise.

quinta-feira, 14 de maio de 2015

Aviso aos Navegantes



Ao iniciarmos os nossos estudos sobre “O Inconsciente” (Freud, 1915), partindo da leitura de diversas editoras das obras de Sigmund Freud e discutindo os conceitos ali apresentados, foi inevitável não nos depararmos com um entrave que nos trouxe a outra discussão que vai além dos conceitos teóricos: os erros de tradução.



Logo no início do referido artigo na Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud editada em 1969, discutíamos o seguinte trecho: “O alcance do inconsciente é mais amplo: o reprimido é apenas uma parte do inconsciente” (p. 191). Nesse sentido no inconsciente existem mais coisas do que só meramente uma representação recalcada (reprimida) como, por exemplo, partes do Eu, tal como Freud diz em O Eu e o Isso (1923):
Reconhecemos que o Inconsciente não coincide com o recalcado; é ainda verdade que tudo o que é recalcado é Inconsciente, mas nem tudo o que é Inconsciente é recalcado. Também uma parte do eu — e sabem os Céus que parte tão importante — pode ser Inconsciente, indubitavelmente é Inconsciente (p. 31, da edição de 1996).
Quando nos deparamos com as edições mais recentes da Standard, de 1996 em diante, observamos que nesse mesmo trecho havia um não no meio da frase: “O alcance do inconsciente é mais amplo: o reprimido não é apenas uma parte do inconsciente” (p. 171, da versão de 1996). Essa forma compromete totalmente o sentido do que Freud está nos propondo ainda mais por ser totalmente antagônica ao sentido da frase justamente anterior: “Tudo que é recalcado deve permanecer inconsciente; mas, logo de início, declaremos que o recalcado não abrange tudo que é inconsciente” (mesmas páginas nas respectivas versões). Essa última versão faz-nos entender que o recalcado é o inconsciente como um todo. Isto se apresenta como um risco para um leitor mais leigo e não muito atento, a reduzir o inconsciente freudiano a ser unicamente o recalcado, deturpando a ideia original de Freud.
Além das versões brasileiras da Imago, outras também são conhecidas atualmente. Temos a versão da Cia das Letras (O inconsciente tem o âmbito maior; o reprimido é uma parte do inconsciente) e a versão de Luiz Hanns (Ou seja: o inconsciente tem maior abrangência que o recalcado, este é apenas uma parte do inconsciente). Nenhuma dessas duas traduções apresentam o erro.
Também versões em outras línguas não apresentam esse erro. A Standard Edition espanhola traz o seguinte texto: Lo inconciente abarca el radio más vasto; lo reprimido es una parte de lo inconciente; e a tradução de Luis Lópes Ballesteros apresenta: Lo inconsciente tiene un alcance más amplio, lo reprimido es, por tanto, una parte de lo inconsciente.
A versão inglesa (Complete Works) reza: The unconscious has the wider compass: the repressed is a part of the unconscious. As duas versões alemãs (Gesammelte Werke e Gesammelte Schriften) apresentam o seguinte texto: Das Unbewußte hat den weiteren Umfang; das Verdrängte ist ein Teil des Unbewußten.
Então percebe-se que não basta – e não é possível – nos debruçarmos sobre os conceitos pura e simplesmente, temos também que nos ater às questões que se referem às versões e traduções pois, como já foi expresso, faz toda a diferença. Só assim parece ser possível compreendermos o que Sigmund Freud realmente estava escrevendo.