quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Palavras e coisas


O último tópico do artigo O Inconsciente antes dos apêndices, o tópico VII, começa diferenciando as neuroses de transferência (histeria de medo, histeria de conversão e neurose obsessiva) das psiconeuroses de narcísicas (psicoses) no que se refere à relação entre o Eu e objeto. Visto que, segundo Freud, já avançamos muito até este ponto com os estudos das neuroses de transferência e da vida onírica, precisamos ainda, para compreendermos melhor o Inconsciente, analisar mais atentamente agora as psiconeuroses narcísicas, para entendermos suas peculiaridades e lançar novas luzes ao conhecimento sobre o Inconsciente.

No que se refere à antítese entre o Eu e o objeto, Freud vem nos dizer que esta não acontece nas neuroses de transferência. Como já vimos em outros momentos, quando há a expulsão do objeto inicia-se a neurose, ficamos apenas com uma representação deste objeto no Inconsciente. Apenas com novos investimentos esta representação pode surgir no Consciente, depois de passar pelo processo primário. Dessa forma o Eu pode voltar a investir sua libido no objeto, e assim, elimina-se a antítese.

Entretanto, nas psicoses, a libido que foi retirada do objeto no ato do recalque (lembremos que até esse momento da teorização Freud contava apenas com um mecanismo – o Recalque) não procura posteriormente um novo objeto, mas se volta para o Eu, e é aqui que se encontra tal antítese conjecturada por Freud. Sendo assim, estabelece-se uma condição narcísica, investindo-se libidinalmente apenas no Eu, e é por isso que Freud vai dizer que não é viável o tratamento psicanalítico de psicóticos, pois eles são incapazes de estabelecer transferência (lembremos também que esta possibilidade foi revista com sucesso por Lacan da década de 1950). Além disso há a recusa do mundo externo, dentre outras características. É por isso que Freud começa a estudar as psicoses, pois “muito do que é expresso na esquizofrenia como sendo consciente, nas neuroses de transferência só pode revelar sua presença no Ics. através da psicanálise.” (Freud, 1915/1974, p.225). Estaria aqui uma primeira forma do jargão psicanalítico de que na psicose o inconsciente está a céu aberto?

Outro importante ponto neste texto é que Freud começa a dar extrema importância ao que ele chama de modificação na fala dos psicóticos, dizendo que ela se torna afetada e preciosa. Logo Freud vem explicitar esses fatos citando outros autores e casos, ficando claro que o pai da psicanálise está trabalhando com a linguagem, fato muito bem ressaltado por Jaques Lacan, que fez grande uso da linguística estrutural em sua primeira clínica, incluindo trabalhos de vulto sobre a psicose.

A partir de um dos casos expostos, Freud conclui que nas psicoses há uma divergência no que diz respeito à palavra e à coisa (palavra enquanto discurso verbal e coisa enquanto atributo Ics.) Nesse sentido, para o psicótico não há uma representação da palavra (Wortvorstellung), há apenas a representação da coisa (Sachvorstellung).
Retomando raciocínios anteriores, Freud afirma que não existem “registros diferentes do mesmo conteúdo em diferentes localidades, nem tampouco diferentes estados funcionais de investimentos na mesma localidade” Então se uma representação Ics. não é investida permanece em estado de coisa, e se é investida ganha além do estado de coisa, o de palavra e só assim vai ao Cs. Temos então que no Ics. só há apresentação de coisa, enquanto no Pcs-Cs há a representação de coisa mais a representação de palavra.

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Aviso aos navegantes II e III


 Como frequentemente fazemos, continuamos a encontrar erros (grosseiros diga-se de passagem) na Edição da Standard Brasileira de Freud e mais uma vez apontaremos mais alguns que, se passarem desapercebidos, podem causar estranheza e desentendimento sobre o que Freud está se referindo.


No tópico VI, página 221 (edição brasileira de 1974) temos o seguinte trecho: “Quanto mais procuramos encontrar nosso caminho para uma concepção metapsicológica da vida mental, mais devemos aprender a nos emancipar da importância do sistema de ‘ser consciente’.”
O trecho em itálico contém um erro, pois, na verdade Freud fala “In dem Masse, als wir uns zu einer metapsychologischen Betrachtung des seelenlebens durchringen wollen, mussen wir lernen, uns von der Bedeutung der Symptoms ‘Bewusstheit‘  zu emanzipieren.” Mesmo sem saber a língua alemã fica claro que symptoms não é sistema, mas sim sintoma.

Outro ponto em que encontramos um erro se encontra já no tópico VII, na página 230, vejamos:

Agora parece que sabemos de imediato qual a diferença entre uma apresentação consciente e uma inconsciente. As duas são, como supúnhamos, registros diferentes do mesmo conteúdo em diferentes localidades psíquicas, nem tampouco diferentes estados funcionais de investimentos na mesma localidade; mas a apresentação consciente abrange a representação da coisa mais a representação da palavra que pertence a ela, ao passo que a representação inconsciente é a representação da coisa apenas. (Freud, 1915/1974, p.229-230)

Atentemos para as expressões em itálico. A forma como está escrito acima, além de trazer a ideia errônea de que existe diferentes registros da representação em lugares distintos no aparelho psíquico, traz uma contradição com o segundo grifo. Na verdade, no primeiro grifo, a forma correta é “As duas não são (...)” e assim refaz-se o sentido correto sobre um único registro da representação.

Para melhor evidenciarmos vejamos o original alemão, com as respectivas expressões em itálico: “Die beiden sind nicht, wie wir gemeint haben, verschiedene Niederschriften desselben Inhaltes an verschiedenen psychischen Orten, auch nicht verschiedene funktionelle Besetzungszustände an demselben Orte, sondern die bewußte Vorstellung umfaßt die Sachvorstellung plus der zugehörigen Wortvorstellung, die unbewußte ist die Sachvorstellung allein.”
A expressão “sind nicht” quer dizer “não são”; e “auch nicht” quer dizer “também não”. Cabe lembrar que edições brasileiras posteriores a 1996 trazem esse segundo erro já corrigido.


Sendo assim observamos mais dois erros na Edição Standard que sem dúvida, se não forem observadas e evidenciadas, podem causar erros e desentendimentos na compreensão dos textos de Sigmund Freud.